Aos 88 anos, primeiro DJ do Brasil toca na maior pista da sua vida

Seu Osvaldo está pronto para mais um baile. Com o case vermelho de vinis ao lado, ele fala sobre a expectativa para aquela noite: “A gente fica numa tensão, fica nervoso.” Apesar da aparente tranquilidade, é assim desde quando tocava seus bailes nos anos 1950 e 1960 — quando deu origem, sem saber, à arte da discotecagem no Brasil. “Isso não se perde, mas depois que começar, vai no embalo.”

Os reflexos de uma vida pioneira estão espalhados pela sala. Fotos suas, um abraço com Emicida emoldurado na estante e um vinil prateado na parede como prêmio honorário. Seu Osvaldo é considerado o primeiro DJ do Brasil e, naquele sábado (10), jogaria um set costurado em 64 anos de pick-ups na maior pista da sua vida.

A poucos dias dos 89 anos (completados neste dia 15), ele foi uma das atrações da Batekoo Festival, que nasceu como festa em Salvador, mas transcendeu como movimento cultural e artístico negro, periférico e LGBT em São Paulo. Para além de atrações como Ludmilla, Afro B,Karol Conká e Àttooxxá, a primeira edição do festival conectou expressões potentes, vindas de pistas e estados diferentes. Do pagodão de O Kannalha, fenômeno dos paredões na Bahia, à bateria da escola de samba paulista Vai-Vai e a poesia da rapper paraibana Bixarte. O foco também é resgatar quem brilhou e abriu caminhos, muitas vezes sem a devida valorização, e interligá-los com o futuro que pulsava na plateia majoritariamente jovem.

Seu Osvaldo era um desses elos — destaque do pequeno palco elevado, dedicado aos DJs da atualidade. Foi anunciado com pompa e foto no telão, bem diferente de quando ele botou o povo pra dançar com seus equipamentos pela primeira vez.

Seu Osvaldo com o filho Dinho, seu “roadie de luxo”, no Batekoo FestivalImagem: Batekoo Festival/Divulgação

Big band de um homem só

Osvaldo Pereira foi uma criança apaixonada por rádio. Em Muzambinho (MG), onde nasceu, ajudava a mãe, lavadeira, a entregar as roupas dos clientes ricos. “Era 1945, então você imagina, quem era pobre era pobre mesmo”, observa. Subia e descia ladeiras, mas parava sempre em frente a um bar, calculadamente às 19h, para ouvir a ópera O Guarani tocar na rádio na Hora do Brasil. “Eu ficava pensando: ‘Como aquela caixinha podia cantar?’ Fez um curso de rádio e televisão à distância e uniu as paixões quando trabalhou como técnico numa loja que consertava rádio e vendia discos.

Na década de 1950 os clubes e salões tradicionais da capital paulista não funcionavam sem uma orquestra inteira para embalar o público com sucessos nacionais e internacionais. Eram eventos caros, restritos a uma plateia endinheirada — e branca. Já nas regiões mais afastadas, o mais comum eram as festas em casa, com condições modestas de som.

Como um nerd da eletrônica em São Paulo, Seu Osvaldo queria reproduzir a grandiosidade do som orquestral com uma vitrola (emprestada), caixas de som, vinis e um talento para desenvolver equipamentos. Nascia ali a Orquestra Invisível Let’s Dance.

Imagem: BATEKOO Festival/Divulgação

A estreia, em 1958, foi com as cortinas fechadas, numa “domingueira”, como eram chamadas as matinês. Só quando os casais começavam a desconfiar da fidelidade do som é que se revelava: aquela era uma big band de um homem só. O que rodava na vitrola eram as “coqueluxes” do momento: Glenn Miller, Ray Conniff, Rita Pavone, Elza Soares e Miltinho. Com o som mecânico de Seu Osvaldo, os bailes no centro da cidade ficaram mais acessíveis e populares. “Era um pessoal simples mesmo, que trabalhava e depois queria dançar”, ele lembra.

A partir daí, aprimorou a técnica, passou a usar dois toca-discos e construiu o próprio mixer, aparelho fundamental para qualquer DJ. Queria que a transferência de uma música para outra fosse imperceptível. Hoje, é uma regra seguida religiosamente, mas na época alguns “dançarinos” eram contra. “Eles pediam para eu não fazer, porque o intervalo entre as músicas era oportunidade para a troca dos pares. Agora o pessoal chia na hora se acontecer.”

Para sua apresentação na Batekoo Festival, passou a semana ensaiando num quartinho ao lado da garagem, na mesma casa onde mora desde os anos 1950, na Vila Guilherme, zona norte de São Paulo.

Escolheu a dedo 35 vinis, com a ajuda do filho caçula, Dinho Pereira, 50, também DJ e “roadie de luxo” do pai. “Algumas coisas fogem da percepção dele, então estou sempre de olho para ajustes na frequência, para que ele se concentre apenas em colocar a agulha na hora certa.”

Priorizou as brasilidades que já faziam ferver as pistas quando tudo era mato. “Tem música que é tão bonita que não importa a época, é só tocar que o pessoal dança com satisfação”. O homem que fez história madrugada adentro em São Paulo, porém, diz que nunca foi bom nos passinhos. “Não sei dançar, só fazer dançar.”

Imagem: Fernando Moraes/ UOL

Vai, Corinthians!

No final da tarde daquele sábado, Seu Osvaldo entra no carro em direção a Neo Química Arena, o famoso Itaquerão, na borda de São Paulo, onde a festa da vez vai rolar. Durante o trajeto, conta que sua carreira de DJ seguiu até 1968, quando parou de discotecar por questões financeiras e familiares.

Estave fora da cena quando o samba rock e os bailes black se popularizaram nos anos 1970 — embora, ainda que na garagem, deixasse os discos rodarem, educando os filhos no ritual do vinil. Hoje, até netos e sobrinhos também são DJs.

Da janela do carro, ele fica impressionado com o tamanho do estádio. Embora seja corinthiano, era a primeira vez que pisava ali. A neta Camila, 22, que passou a acompanhá-lo recentemente nos eventos, filma a chegada dele pelo celular: “Animado, vô?”. “Hoje é ‘Vai Corinthians!'”, respondeu o veterano.

Já o filho Dinho, que cresceu apenas ouvindo as histórias dos tempos áureos, conta que o reconhecimento do pai veio tardiamente, graças ao livro “Todo DJ já Sambou”, de 2003, da jornalista Claudia Assef — a primeira a jogar luz no pioneirismo esquecido do mineiro.

“Nos anos 1950 as festas com orquestras eram inacessíveis para o povo preto, para as pessoas de baixa renda, independente da cor. Ele fez a democratização da música, do entretenimento”, diz Dinho, carregando o case do pai estádio adentro. O lado B dessa história, ele diz, veio como uma injeção de ânimo na vida do pai. “A volta do Seu Osvaldo para o mapa ressignificou a vida de todos nós, consequentemente. Entender a magnitude. Ele deu o start nisso até chegarmos aqui”, diz, entrando no festival. “Aqui com certeza é o maior evento que ele já tocou.”

O pai tem essa dimensão? “Muitas vezes, não. Mas a gente sempre pontua isso. Ele tem conceitos simples, mas essa simplicidade dele é algo surreal.”

Seu Osvaldo contou com a neta Camila como stylist
Imagem: Tiago Dias/UOL

Enquanto o Fat Family, um dos grupos de maior sucesso do pop no final dos anos 1990, abre os trabalhos no palco principal, Seu Osvaldo passeia pela área reservada aos artistas e cumprimenta todos os que vê pela frente. Os produtores da festa fazem reverência ao encontrá-lo. Ele sorri tímido e agradece.

No camarim, a neta auxilia o avô na troca de roupa. “A gente queria deixar meu avô confortável do jeito que ele já se veste, mas apresentá-lo bem para um público muito grande”, diz. “Geralmente quem veste ele é minha tia, superbásico, precisa um pouco mais de cor.”

A camisa social, um hábito que ele carrega desde os bailes dos anos 1950, dá lugar a uma de marca famosa, com a estampa de cenários do Rio de Janeiro. Ele se olha no espelho, aprova o look — “não é tão colorido” — e se certifica, por hábito, se a carteira, RG e a máscara migraram de roupa.

“Brabo!”

Um produtor abre a porta do camarim: é hora de se posicionar no palco. Ele dispensa ajuda e desce as escadas do estádio com rapidez para acompanhar os passos da equipe. Passa pelo público que cintila na noite com makes, brilhos, beijos, danças e reboladas. Tudo chama a sua atenção.

Posicionado na frente da pick-up, ele e o filho abrem o case e puxam os discos de Wilson Simonal e Sergio Mendes. A mestre de cerimônia chama a atenção do público para o palco secundário. “O primeiro DJ do Brasil é um homem negro. Afinal, somos um movimento sobre ancestralidade, é sobre valorizar, reconhecer e trazer pra roda ainda em vida quem abriu os caminhos para que a gente pudesse estar aqui hoje”, diz ela, com emoção. “Então, façam muito barulho para o DJ Seu Osvaldo.”

Imagem: Acervo pessoal

Dinho dá um passo para trás para que apenas a atração apareça no telão. Osvaldo sacode os braços para o alto e se curva diante da plateia, em seguida, repousa a agulha sobre o vinil e a voz magistral de Simonal toma todo o espaço: “Sim, sou um negro de cor / Meu irmão de minha cor / O que te peço é luta sim / Luta mais!”

Quando a levada reggae de “Double Barrel”, da dupla jamaicana Dave & Ansel Collins, rola, até casais se formam na pista, tal qual nos bailes daquela outra São Paulo. Mas a dança domina mesmo quando toca Tim Maia. Seu Osvaldo continua sem dançar, mas acompanha lentamente com a cabeça o balanço.

A luz no palco fica vermelha com a entrada de “Taj Mahal”, que joga nas potentes caixas do festival o balanço e o som frenético de cuíca e percussão, como se aquela música de Jorge Ben resumisse a energia da noite. Ao fim do set, a plateia, já totalmente capturada por Seu Osvaldo, aplaude e estala os dedos no ar. O festival terminaria a noite com 12 mil pessoas — uma plateia que Seu Osvaldo nunca tinha encarado.

“O que a Batekoo faz hoje é exatamente a continuidade desse movimento fora da curva de quebra de padrões e paradigmas. Sem falar de Seu Oswaldo, que hackeou o conceito de uma orquestra sendo o primeiro DJ do Brasil e negro, com uma história linda e de pé, disposto, tocando em seu toca-discos até hoje”, diz Mauricio Sacramento, CEO, fundador e DJ da Batekoo. “É exatamente o que a gente quer mostrar pro mundo. História, ancestralidade e continuidade de nossos sonhos e conquistas.”

Ao descer do palco e fazer o caminho de volta ao camarim, Seu Osvaldo é recebido com gritos de “lenda”, “brabo” e pedido de foto. O filho confidencia que, na hora do vamos ver, o “velho” ficou nervoso mesmo, mas tudo saiu como planejado. Com um sorriso ainda maior, Seu Osvaldo confirma: “Você viu que no final todo mundo dançou?”

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